(extra) Ordinário
- Linda Queiroz
- 18 de abr.
- 2 min de leitura
Atualizado: 22 de abr.
Há quem fuja da rotina como se dela emanasse o tédio, o vazio, o lento afundar da alma.
Mas eu — talvez por ofício íntimo, talvez por vocação secreta — gosto da vida comum.
Gosto da vida que se repete, não por inércia, mas por escolha silenciosa.
A vida simples, habitual, ordinária.
Sim, ordinária.
Palavra que muitos escutam como sinônimo de mesmice, de falta de brilho. Mas o dicionário, que conhece melhor a língua do que os apressados, diz que "ordinário" é apenas o que é corriqueiro, comum, que segue sua ordem, o que tem ritmo. E não há música sem ritmo.
Não há paz sem repetição.
Imagina só acordar todos os dias no mesmo horário, caminhar os mesmos passos até o mesmo trabalho por anos!
Para alguns, isso é prisão.
Para mim, é liberdade.
A liberdade de saber onde estão as coisas.
A liberdade de confiar no chão que se pisa.
Há muita coisa boa na previsibilidade da vida:
dormir na mesma cama, no mesmo lado, que já guarda o formato de suas curvas.
Treinar no mesmo horário, onde não há gritaria juvenil.
Ir à missa no domingo e receber o mesmo “Paz de Cristo!” das mesmas mãozinhas enrugadas. E depois, como um ritual quase sagrado, sentar na mesma mesa da mesma padaria e pedir a mesma peculiar combinação: queijo coalho, geleia, cuscuz doce e café preto. Ali, entre goles e migalhas, assistir ao teatro das famílias que também repetem sua presença — fiéis à alegria discreta de um domingo igual a tantos outros.
De dormir e acordar ao lado da mesma pessoa, com o mesmo cheirinho — confortável, seguro, caloroso — de sempre. Como se o tempo, ali entre lençóis e respirações, fizesse uma pausa para lembrar que o amor também tem cheiro, e que o afeto pode morar na repetição.
Em ouvir o mesmo country antigo enquanto o churrasco chia na brasa.
Em rir das mesmas histórias, que não cansam porque já pertencem a nós como pertencem os braços e os pés.
As surpresas são bem-vindas, sim! — mas não são alicerces.
O novo encanta, mas é o hábito que sustenta.
Os hábitos, a rotina, ou como quiser chamar, constroem mais do que histórias: criam tradições.
A tradição — essa forma de memória viva — nasce da rotina, e não do espanto.
É na repetição que as coisas criam raízes.
E tudo o que cria raiz, permanece.
Tudo o que permanece, vale.
Assim, o que é ordinário ganha um prefixo sutil, quase secreto.
E se revela, enfim, como aquilo que sempre foi: extraordinário.
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